terça-feira, 22 de abril de 2014

RESENHA DO LIVRO ELOGIO À LOUCURA

RESENHA


ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2002.

Sérgio Donizeti Ferreira

           
Erasmo de Roterdão, nascido na Holanda, no ano de 1465 e falecido em 1536, foi em sua época um famoso teólogo e filósofo, ao mesmo tempo que respeitado pelos eclesiásticos, seus coetâneos, foi critico atroz da Igreja católica da época.
Em sua obra mais famosa_ Elogio da Loucura_ uma personagem inusitada, a loucura, propositalmente por ele colocada como a principal protagonista do livro, vai ela mesma narrando e criticando diversos aspectos da vida e do mundo em geral.
A loucura seria,então, uma sátira, uma ironia, que o autor se permite, uma vez que, obra de tal calão  não deveria ser levada em consideração, porque não era uma obra “séria”, que tratasse de tema tão relevante, ou que pudesse incorrer em heresia.
Inteligentemente, de maneira mordaz, o autor coloca na boca da “Loucura” críticas aos hábitos corriqueiros e banais da vida humana, como também refere-se constantemente à mitologia grega, aos filósofos, aos poetas e comediógrafos gregos etc;
            Eis alguns trechos interessantes narrados pela Loucura:
            “(...) a gente magra se dedica ao estudo da filosofia ou à coisa séria e difícil. Os meus loucos, ao contrário, sempre gordos e roliços.” “Ser louco é deixar-se ao sabor das paixões”. “ É verdade que a mulher é um animal extravagante e frívolo, mas interessante e agradável”. “(...) mulher é sempre mulher(...) pertenço ao seu sexo, pois sou sempre a sua razão.”
            Já os homens são rabugentos, e possuem um dos maiores dos vícios, a prudência. O filósofo, por sua vez, é estraga-prazeres, onde ele chega acaba-se a descontração.
Há constantes referências aos paradoxos da vida humana: quente-frio, pobre-rico, puerícia-senilidade etc; ao mesmo tempo em que considera a vida uma comédia, na qual não cabe a cada um mais do que representar.
            A prudência, visto que somos homens, consiste em não querermos ser mais sábios do que o que permite a nossa natureza, pois os filósofos adotam a razão, os homens a paixão, e é só a loucura que faz com que  nos aplaudamos a nós próprios.
            A loucura em sua linguagem  demonstra-se céptica em relação à situação trágica dos viventes, tanto os que optarem por uma via, quanto os que optaram por outra, ou seja, não há final feliz para os que  escolhem viver guiados pela razão, nem os que se deixam guiar pela paixão.
            Os deuses escolhem os seus favoritos, a loucura abarca a todos eles; os deuses do ponto mais ato do Olimpo debocham de seus adoradores.
            Para a loucura toda e qualquer actividade humana é relativa. Tanto que é ridicularizada a arte do gramático, do orador, do dialético, do teólogo; atividades estas, tidas por muitos em alta conta, pois representam as mais respeitosas e dignas.
            Ao final do livro, a loucura satiriza a atividade dos religiosos e padres, dizendo que não passam de sujeitos gordos que gastam a vida pensando no que irão comer no dia de amanhã. Já os teólogos papagaiam, em seu latim, seu hebraico, seu grego.
            Por isso, ela será categórica ao afirmar  que a terra está cheia de loucos, ninguém escapa à presa da loucura, se Deus caracteriza-se pela sabedoria, o homem caracteriza-se pela loucura.


 Apreciação pessoal

            A obra de Erasmo encontra-se situada num tempo e num espaço bem específicos. Trata-se do final de uma época, do declínio de um imaginário cultural e de uma mentalidade forjada ao longo de muitos séculos, que fundamentalmente fez com que o homem em geral passasse o tempo demasiadamente ocupado em olhar para o céu, preocupado em contemplar Deus, por causa do medo de que o mundo acabasse e que, uma vez o sujeito morto perderia a salvação de sua alma, caso se descuidasse ao longo de sua existência.
            A obra de Erasmo situa-se na fronteira do medieval com o moderno, cujo embrião vinha sendo gestado a algum tempo antes.
Por outro lado, Erasmo era homem de igreja, ele mesmo era religioso, crítico, principalmente, desta igreja à qual servia, pois percebia não ser mais  possível que   a instituição maior do cristianismo, naquela época, pudesse  viver imersa no abismo em que cada vez mais se afundava.
            Os tempos sugeriam a mudança de ares, atualização, o que, no entanto, o catolicismo não soube fazer, tanto que o protestantismo será a versão renovada de um cristianismo que deixa de ser forma hegemônica e se fragmenta, através das referências nacionais européias.
Em Elogio da Loucura, o autor em tom jocoso não só ironiza, como também relativiza elementos constitutivos da vida humana; sugere que o indivíduo ao ter contato com  o texto reflita sobre sua posição no mundo, uma vez que, de sua ironia mordaz, ninguém escapa.

             Penso que hoje, nos nossos dias, a palavra loucura, ficou restrita às pessoas que por alguma deficiência são conduzidas à reclusão em manicômios. Todavia, cogito que o abismo social, linha divisória que separa uma fatia da sociedade em condomínios fechados, em mansões, protegidas por cercas de arame electrificadas, ao mesmo tempo que relega outra parte da sociedade a condições de vida inumanas, sem possibilidade de conseguir o mínimo necessário, restando somente a proteção das marquises e dos viadutos das  grandes cidades, outra coisa não são senão um novo viés, uma nova versão da loucura que Erasmo, ironicamente, menciona em seu livro. Esta loucura talvez seja de todas a mais insana.