domingo, 3 de abril de 2011

Relato de experiência pedagógica no enfrentamento ao problema do preconceito religioso

O DIFERENTE QUE INCOMODA: RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA NO PEDAÇO, DIVERSIDADE E ALTERIDADE NA ESCOLA PÚBLICA
Relato sobre trabalho em sala de aula e fora a respeito de

religiões de matriz afro-brasileira no entorno de uma escola pública em Minas Gerais como estratégia de enfrentamento ao preconceito e à discriminação

Autor: Sérgio Donizeti Ferreira
Professor de Ensino Religioso da Rede Municipal de Contagem, Minas Gerais. Graduado em filosofia pela PUC Minas e especialista em Ciências da Religião pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA)

No presente texto tenho por objetivo relatar o modo como venho enfrentando a questão do preconceito, principalmente, em relação às religiões de matriz afro-brasileira em uma escola pública municipal, em Minas Gerais. Basicamente o artigo se organizará tentando priorizar três eixos: o trabalho em sala de aula e as informações que os estudantes trouxeram e continuam trazendo sobre este tema; a experiência de intervenção de uma equipe de educadores por meio de uma pesquisa nos terreiros do entorno da escola; a observação do reflexo desta intervenção no cotidiano da escola, principalmente, dentro da sala de aula e através da convivência entre estudantes de outras denominações religiosas e os de matriz religiosa afro-brasileira.
Para começo de conversa terei de relatar como tudo começou. Então, vamos lá. No segundo semestre de 2007, quando cheguei à Escola Municipal Glória Marques Diniz, em Contagem, Minas Gerais, para trabalhar como professor de Ensino Religioso no 2º ciclo, fui observando que durante as aulas ou fora delas, quando os alunos falavam sobre sua filiação religiosa, predominavam os que se declaravam católicos, evangélicos e, raríssimas exceções, alguns se diziam espíritas. Bem, aos poucos, comecei a ouvir com muita freqüência a palavra “macumba” e também um estudante ou outro chamando colegas pela alcunha de macumbeiro. Sabia que havia uma referência pejorativa ao colega, como se fosse um xingamento. Isso me deixava, no mínimo, curioso. Procurei no dicionário, primeiro no Aurélio, este verbete e eis que deparei com a seguinte definição:

[Do quimb. Ma`kôba.] S.f. Bras. 1. Rel. Designação genérica dos cultos sincréticos afro-brasileiros derivados de práticas religiosas e divindades de povos bantos, influenciadas pelo candomblé e com elementos ameríndios, catolicismo, do espiritismo, do ocultismo, etc. 2. Rel. O ritual desses cultos. 3. Rel. Denominação atribuída à quimbanda (q. v.) pelos seguidores da umbanda da chamada linha branca. 4. Rel. impr. Magia Negra. 5. Rel. Pop. Bruxaria (2). 6. Antigo instrumento de percussão, espécie de reco-reco, de origem africana, e que produz um som rascante (grifo nosso).

Porém, observe, na seqüência, a definição do dicionário Houaiss para este mesmo verbete:


substantivo feminino
1 Rubrica: música, religião. Regionalismo: Brasil.
antigo instrumento de percussão de origem africana, espécie de canzá que consistia num tubo de taquara com cortes transversais onde se friccionavam duas varetas, e que era outrora us. em terreiros de cultos afro-brasileiros (grifo nosso)
2 Rubrica: religião.
designação genérica dos cultos afro-brasileiros originários do nagô e que receberam influências de outras religiões africanas (p.ex., de Angola e do Congo), e tb. ameríndias, católicas, espíritas e ocultistas
3 Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil.
o ritual celebrado nesses cultos
4 Derivação: por extensão de sentido.
designação leiga dos cultos afro-brasileiros em geral (e seus rituais respectivos)
4.1 Derivação: freqüentemente. Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil.
designação leiga desses cultos quando supostamente praticam a magia negra
Obs.: cf. quimbanda
5 Derivação: por metonímia. Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil.
oferenda a Exu, esp. nas encruzilhadas; despacho
6 Derivação: por extensão de sentido.
em sentido lato, magia negra, feitiçaria; feitiço, despacho
Ex.: até m. já fizeram para (ou contra) ele
7 em terreiros do Nordeste do Brasil, excremento
8 ousadia, audácia
9 Regionalismo: Rio de Janeiro.
no início do sXX, filha-de-santo da nação cabinda

Observe que no Aurélio a definição de instrumento musical vem em último lugar e no Houaiss em primeiro. Parece-me que a do Houaiss é mais coerente do ponto de vista histórico e mais lógica se pensarmos que as palavras são vivas e à medida que são usadas sua semântica vai recebendo outros contornos, ganhando novos significados. Tento mostrar para meus estudantes as várias possibilidades do termo e que eles se limitam somente à definição 6 (seis) do Houaiss e a 4 (quatro) e 5 (cinco) do Aurélio, além do que, procuro mostrar valores positivos.
Ao término do ano de 2007, por meio de conversas informais com pessoas residentes no bairro, fui informado sobre a existência de vários terreiros de candomblé próximos à escola. Daí em diante, sempre que em sala de aula a palavra macumba aparecia concluía que havia um certo sentido no uso do termo, pois, embora eles não soubessem, estavam se referindo, na verdade, ao candomblé e ao toque dos tambores, mesmo sem saber que macumba pode designar uma determinada religião e um instrumento de música, além de tantos outros significados.
Cheguei à conclusão de que seria necessária uma melhor compreensão do problema do preconceito contra as religiões afro-brasileiras. Além disso, caberia observar com mais detalhes a forma como isso se dava no contexto da minha escola através do uso constante do termo macumba, que era a única palavra que os estudantes conheciam e a ela atrelavam o preconceito (desconhecimento), o medo e uma carga negativa.
Então, propus o enfrentamento do problema por meio de um projeto de pesquisa. Resumidamente a estrutura seria: fazer um levantamento das casas de candomblé no entorno da escola; elaborar um questionário estruturado; conhecer mais de perto ou por dentro esta religião através de visitas e trabalho de campo e, por fim, publicar um texto contendo o resultado deste trabalho, visando com isso produzir conhecimento com base na realidade do (s) bairro (s) próximo (s) da escola de onde são provenientes os nossos estudantes.
Alguns colegas aceitaram a idéia e uma equipe de trabalho com quatro pessoas se constituiu, a saber: Sandra Mara, supervisora pedagógica; Paola Micheli, ex-professora de ensino religioso da escola; Higino, capoeirista e coordenador do Programa Escola Aberta na escola e eu, professor de ensino religioso.
Para além disso, seria interessante pensar o caráter interdisciplinar deste projeto, pois com a aprovação da Lei nº 10.639/2003, a qual colocou para o sistema nacional de ensino a obrigatoriedade de se ensinar história da África e cultura afro-brasileira, havendo um acréscimo de dois artigos à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB): 26-A e 79-B. A religião é elemento fundamental da cultura e como tal deve ser estudado, como qualquer outro elemento do sistema cultural. Nesse sentido, o conhecimento sobre ela pode entrar não somente no currículo de história, artes ou literatura, como também da geografia, das linguagens de modo geral, do ensino religioso, pois é ingrediente que ajudou a formar a cultura brasileira e que a impregnou de valores, hábitos, costumes, de arte, de música e contribuiu para formar a “alma da cultura brasileira”.

Alteridade, no território desconhecido da diferença: o outro

No ano de 2008 iniciamos as visitas aos terreiros. O primeiro encontro foi o encontro dos desconhecidos. Nós, vindo da escola, e os zeladores (sacerdotes e sacerdotisas) do candomblé nos recebendo. Foi o primeiro contato de pessoas estranhas umas às outras, com exceção do Higino, que é morador do bairro e já conhecia todas as lideranças do candomblé dali. Pelo que pudemos concluir, foi a primeira vez que profissionais da nossa escola faziam um trabalho de pesquisa dessa natureza.
Algumas perguntas para as quais precisava encontrar respostas: por que os estudantes que são do candomblé têm dificuldade de se assumirem enquanto tais? De fato, a qual referencial os estudantes mais se apegam, quando falam macumba: seria o despacho encontrado nas encruzas? Seria o instrumento de música? Seria a própria palavra ouvida pela boca de outros: na escola, na família, entre os amigos, na rua por meio de relatos esparsos? Esses eram alguns dos questionamentos. A resposta que encontrei para a primeira pergunta foi: ninguém em sã consciência faz opção pelo sofrimento. Se ser do candomblé significa ser perseguido, então, se faz necessário desenvolver algumas estratégias de sobrevivência e uma delas é não dizer que se é do candomblé; melhor até dizer que se é católico ou espírita. Afinal, essa foi a estratégia adotada pelos submetidos ao sistema escravocrata colonial, como sabemos pela história do Brasil.
Lembro-me que numa de nossas entrevistas, havia, além da pessoa chefe da casa, uma outra pessoa membro do candomblé e mãe de uma estudante de nossa escola que ao ser perguntada sobre essa questão da dificuldade de se assumir candomblecista nos respondeu que o principal medo de sua filha não era ser discriminada, mas sim ser rejeitada pelas colegas e amigas. Por isso ela não dizia de qual religião era, pois se dissesse as amigas se afastariam dela. Este fato ocorria com freqüência no ambiente escolar.
Eu, como professor, fiquei surpreso ao encontrar vários dos meus alunos (essa, talvez tenha sido uma das melhores descobertas, pois afetou a relação professor x aluno na ambiente escolar). Eles ficaram surpresos também, pois parece que foi a primeira vez que um professor visitava alguma comunidade religiosa de aluno e por se tratar do candomblé tornava-se mais raro ainda. Curiosamente, tive impressão de que aos olhos desses meus alunos, a partir desse momento, era como se eu, no meu papel institucional e simbólico de professor deles ao sair do espaço habitual da escola e adentrar no espaço sagrado e religioso deles eu estava, de alguma maneira, legitimando-os, pois não fui até lá para discriminá-los, mas sim para reconhecê-los como sujeitos, cidadãos. Aquele gesto queria transmitir-lhes que a prática religiosa do candomblé é tão legítima quanto as das outras. E nesse sentido, não existem melhores nem piores, todas as denominações religiosas são dignas de respeito e o espaço escolar é onde se manifesta a diferença e a diversidade, seja ela religiosa ou não.
Todos os terreiros que listamos foram solícitos em nos receber. Todos os líderes concederam-nos entrevistas e explicações sobre o candomblé, convidaram-nos para as festas públicas em suas respectivas casas. Na entrevista tentamos colocar e ver qual a visão dos candomblecistas sobre questões como: a estrutura de organização de uma casa de candomblé; as divindades; a relação com a natureza; como é a relação da casa com a vizinhança; como é lidar com o preconceito e a discriminação religiosa; a dificuldade em se assumir candomblecista; a relação com a umbanda; o papel e importância da mulher dentro da casa de candomblé; como as crianças e adolescentes do candomblé são tratadas pelos colegas e professores dentro da escola ou quais são as reclamações mais freqüentes etc.
Em algumas das nossas entrevistas era notável o tom de desabafo dos zeladores (sacerdotes e sacerdotisas), outros eram mais contidos, respondiam somente ao essencial. Numa casa de candomblé angola havia uma igreja evangélica bem em frente, é no mínimo intrigante, mas não inocente. Além do que, em sociologia da religião há uma tese sobre o mercado religioso. E quando há mercado, não nos esqueçamos, há disputa.
As casas de candomblé são provenientes de várias nações. Visitamos duas de nação ketu e cinco de nação angola próximas à escola e uma em outra cidade. As de nação angola podem se subdividir em muxicongo e cassange. As de nação Ketu usam o dialeto yorubá e as de angola usam o dialeto banto. Nos meios de comunicação e na música popular brasileira ouvimos com freqüência palavras como orixá, babalorixá, ogã (que são todas do dialeto yorubá), suas correspondentes no banto são nkisse, tateto, cambono.
Através do contato que estabelecemos com pessoas do candomblé e por meio das entrevistas gravadas, fotos, vídeos, conversas informais, visitas aos rituais públicos fomos, aos poucos, nos tornando conhecidos nesse espaço pelos seguidores desta religião. Havia uma questão forte que nos colocava frente a frente: alargar a compreensão do fenômeno do preconceito e discriminação contra as religiões de matriz afro-brasileira e, em segundo lugar, melhorar a relação entre escola e estudantes dessa mesma matriz religiosa.

O reflexo de um ano de caminhada: de volta à escola

O contato estabelecido através das visitas e das conversas possibilitou que laços afetivos aproximassem as pessoas. A isso credito o que veio acontecer depois. Meus estudantes não passaram pelo constrangimento em sala de aula de terem que declarar de qual religião eram, mas foram percebidos a partir do momento em que começamos a pesquisa. Ao longo do ano de 2008 passei a ter mais elementos para trabalhar com meus estudantes por causa da pesquisa.
Certa vez, numa aula em que fazíamos uma discussão sobre racismo, uma estudante do 1º ano do 3º ciclo (antiga 6ª série) se assumiu do candomblé espontaneamente e ainda apontou quatro alunos que a chamavam de macumbeira. Pouco tempo depois ela estava de preceito e por causa disso tinha de vir à escola vestida de branco, usando dois braceletes na parte superior dos braços (chamado contraegun), usando kelê, calçando sandálias e com um chapeuzinho ou boné branco. Uma professora de língua vernácula (português brasileiro), que sabia do meu trabalho e da pesquisa, pediu-me que tivesse uma conversa com a turma da sala em que esta menina estudava para evitar maiores problemas (entenda-se discriminação). Fiquei surpreso quando a estudante assumiu sua identidade religiosa, mas penso, sem falsa modéstia, que o fato de ela ter sido capaz de dar esse passo e se posicionar não foi por acaso e sim porque, no mínimo, sentiu confiança de que poderia fazer isso na presença do professor de ensino religioso. Ela sentiu-se segura.
Na ocasião pedi que fizessem um círculo e falei-lhes do momento que a colega estava vivendo e que ela teria de vir à escola por um período trajando-se do modo como eles estavam vendo. Foi uma experiência de diversidade da qual não vou me esquecer. Pedi, então, que a menina compartilhasse com seus colegas sobre o momento que ela estava vivendo e sobre sua indumentária. Ao que ela atendeu. A turma parece que compreendeu, pois não tivemos um problema sequer, pelo menos não tive informações e ela não procurou a direção da escola ou a mim para reclamar sobre isso.
Uma outra menina do 3º ano do 2º ciclo (5ª série) viveu uma experiência mais dramática. Alguns de seus colegas a viram em uma foto vestida a caráter. Alguns meninos de sua turma começaram a chamá-la de macumbeira. Desta vez tive de fazer uma intervenção mais dura com a turma. Disse-lhes que tratar uma colega daquele modo era o mesmo que discriminá-la por ser de uma religião que eles desconheciam ou que era diferente da deles. Propus que a turma se reconciliasse com a colega, que ela ficara muito ofendida e que se referissem à religião dela por meio de um termo mais adequado em vez de macumbeira. A partir daí não houve mais problema na turma por causa disso. E a menina não precisa esconder sua filiação religiosa.
No início de 2009 mais duas adolescentes se iniciaram no candomblé e por causa disso tinham de ir à escola portando uma indumentária própria. No caso delas, além da roupa branca elas tiveram de raspar a cabeça. Ambas tinham os cabelos compridos. Acho que para a mulher esse é um fator que torna as coisas mais difíceis ainda dentro do espaço escolar. O cabelo é um símbolo da vaidade e perdê-lo não é tão fácil quanto o é para um menino. Culturalmente não nos assustamos quando nos deparamos com um menino careca, mas quando é uma mulher... pensamos um monte de outras coisas.
Aos poucos os estudantes vão notando que não é aceitável um tratamento diferencial aos colegas por causa de sua diferença e que o diferente é e deve ser aceito e que isso é um valor que não pode ser negado.
Entre os menores há resistência tanto quanto entre os maiores. No meu trabalho pedagógico venho apostando que a diversidade dentro do espaço escolar deve ser colocada para as crianças. Quanto antes elas forem educadas para o respeito entre si e à diversidade e para uma convivência saudável, tanto melhor. Creio que estarão mais preparadas para viver e conviver na sociedade atual e futura.
Vamos a mais um caso marcante ocorrido em 2009. Desta vez numa turma de 1º ano do 2º ciclo (3ª série). Não me esqueço do episódio, que muito me fez pensar. A escola participa de um projeto do governo federal, denominado Mais Educação. A concepção basicamente é que o estudante fique na escola no contraturno participando de oficinas. Certa feita, no turno da tarde, acontecia uma oficina de percussão bem próximo à uma das salas de uma turma de 1º ano do 2º ciclo, na qual eu leciono. A professora que estava com eles coincidente ao horário da oficina de percussão me disse que houve alguns comentários dos estudantes, alguns muxoxos, fazendo referência aos sons da percussão da oficina e associando-o à macumba. Pelo visto eles associavam o toque da percussão à macumba. Então, a professora tentou conversar com eles sobre isso, tentando amainar um pouco a situação.
Nesse mesmo dia, dei minha aula de Ensino Religioso e, não querendo deixar passar de liso o acontecido, uma vez que proponho a reconstrução semântica e imaginária dos estudantes, entrei no assunto e puxei a conversa alegando que a professora deles me havia dito sobre os comentários deles acerca da macumba. Foi a primeira vez que o assunto foi abordado nesta turma.
Minha intenção primeira foi provocar os estudantes para tentar situar em que pé estava a questão. Portanto, usei a seguinte estratégia: anotei no quadro a palavra macumba significando instrumento musical e a expressão oficina de percussão e tentei estabelecer a diferença entre as duas. Não me esqueço do comentário de um menino: “eu vou ter que escrever essa palavra no meu caderno? Se minha mãe “ver” essa palavra no meu caderno ela me bate!”
De cara abordei o problema da maldade, mas antes fiz uma introdução sobre um dos principais significados que a palavra macumba possui, eu a defini simplesmente como um instrumento musical de origem africana e, em seguida, expliquei o significado da expressão “oficina de percussão”, que era o que estava acontecendo na sala ao lado e, depois, aleguei que não entendia qual relação havia de uma coisa com a outra; disse-lhes que compreender a palavra macumba somente pelo viés do mal ou da maldade seria ignorar uma porção de fatos corriqueiros da vida humana cotidiana. Falei-lhes que desejar o mal para alguém independe de ser ou não macumba. Posso desejar o mal para alguém de quem não gosto sem que ele o saiba. Ou seja, achamos que a macumba soa como algo mau, mas não percebemos que há tanta ou mais maldade em um coleguinha que usa de ameaças para conseguir as coisas do outro coleguinha; um colega que bate no outro; há tanta maldade em discriminar o outro por causa de alguma diferença que ele manifesta, por exemplo, chamar um coleguinha negro de macaco etc.
A reação foi imediata! De repente, havia umas oito mãos erguidas pra cima pedindo a vez pra falar. Alguns continuaram dizendo veementemente que a macumba é fazer mal pros outros. Até falaram em boca de sapo costurada. Outro sacou o que eu estava tentando lhe dizer e fez a associação da macumba com música e que, então, o pessoal que estava tocando estava fazendo macumba num sentido não pejorativo.
Minha surpresa e o que fertilizou meus pensamentos foi a desenvoltura de uma das estudantes que se disse evangélica da igreja Deus é Amor. Ela alegou que o seu pastor fala que a macumba é o mal. Mas o melhor ainda estava por vir, ela ficou tão empolgada que veio até a frente da turma e, antes de virar-se de frente para os coleguinhas, me perguntou de forma direta se eu acreditava em revelação. Eu lhe respondi que esta palavra poderia ter vários significados e que eu não sabia o que revelação significava dentro da religião dela. A garotinha então relatou que há algumas pessoas que congregam dentro da igreja dela que têm revelações e que, certa feita, uma mulher que congregava teve uma revelação do Espírito Santo, segundo a mesma, alguém havia feito uma macumba para uma outra pessoa que também estava na congregação.
Esta garota teve uma sacada que considero brilhante para um menina de 9 anos de idade. Ela percebeu a fala do pastor, a fala da pessoa que dizia ter tido a revelação em confronto com o que eu acabara de lhes falar, ou seja, ela estava diante de um confronto de interpretações. O discurso do grupo religioso reafirmando o conceito pejorativo e discriminador de macumba e o do Ensino Religioso, defendendo a sala de aula como espaço de convivência em que a diversidade de crenças deve ter o mesmo tratamento, nem mais nem menos, nem melhor nem pior.
A partir dali eu disse que eu a estava entendendo, que a partir dali nós poderíamos construir uma compreensão mútua. Disse para a garotada que, a partir daquele momento, eu os estava entendendo. Sabia de onde eles estavam falando e a razão de nossas compreensões serem tão diferentes.
O problema não foi solucionado naquele dia, naquela aula de 50 minutos, mas vejo que as crianças sacaram que elas puderam dizer o que sabem e ouviram o que nunca tinham ouvido até então sobre o assunto e que na escola alguém estava dando tratamento a uma questão tabu pra eles. Acho que alguns entenderam que vários discursos estavam em jogo, mesmo que sem muita consciência: o que eles receberam e a abordagem do professor de ensino religioso. Esse era o objetivo.
Houve também duas experiências distintas em duas turmas diferentes que me deixaram muito satisfeito. Em uma turma de 2º ano do 3º ciclo (7ª série) estavam ocorrendo apresentações de trabalhos sobre religiões. Os trabalhos eram feitos em dupla, devendo os estudantes fazer uma pesquisa sobre o tema escolhido (uma religião ou corrente filosófica) e apresentar o resultado em sala de aula para os colegas. Uma dupla de alunas apresentou sobre o candomblé. Foi muito interessante, pois uma das alunas dessa dupla é do candomblé; ela falou a partir da experiência religiosa que ela tem. Procurou as pessoas do seu grupo religioso, entrevistou a própria mãe e anotou o conteúdo dessa conversa. O mais impressionante naquele dia foi que todos os colegas ficaram interessados e participaram fazendo muitas perguntas. A empolgação foi tamanha que só parou quando o sinal tocou. Um aluno fez perguntas e com liberdade comentou com a turma sobre seu tio que mora em outra cidade e freqüenta terreiro.
Digo que em 2009 tive uma turma de estudantes de 2º ano do 2º ciclo (4ª série) que considero a mais filosófica. Explico! Boa parte desses estudantes é movida por perguntas. Querem saber de um a tudo. Uns perguntam mais, outros menos, mas perguntam. Certa feita, trabalhava com eles o repertório das comidas dentro do horizonte das religiões. O tema era: os alimentos e as religiões. Pegamos umas seis tradições religiosas diferentes e fomos vendo quais os alimentos que elas usam. Quando falamos sobre algumas comidas dentro do candomblé, eis que alguns se erguem: “candomblé não professor, macumba”! A partir daí fui eu lhes dizer a razão pela qual preferiria que eles se referissem a esta religião pelo nome de candomblé, em vez de macumba, uma vez que a palavra se presta a tantos mal entendidos. O que mais me chamou a atenção foi que essa turma não ficou na retaguarda, com medo, mas daí em diante começaram a descarregar em cima de mim um montão de questionamentos e o que mais me surpreendeu: duas crianças fizeram suas perguntas a partir de visitas que fizeram junto com suas mães a dois dos terreiros por nós visitados. Uma menina falou-nos sobre a consulta que sua mãe fez a uma mameto , dando os detalhes do preço cobrado e a conversa que houve entre as três: ela, sua mãe e a mameto. A outra menina me fez uma pergunta bem objetiva: qual a razão daqueles chifres de boi nas casas de candomblé? Disse-lhe que poderia ser de umbanda também. Mas completou dizendo o nome da chefe da casa aonde ela e sua mãe tinham ido. Era uma outra mameto, a qual nós tínhamos entrevistado. Foi bacana, pois elas puderam falar sobre a experiência de ter ido lá e eu pude notar que a curiosidade ainda era evidente. Cunhei, então, a partir desse dia, uma frase para expressar minha opinião sobre esta turma e a aula desse dia: a primeira turma na escola que durante esses dois anos de trabalho em vez do medo, se move pela curiosidade.


Considerações finais

A escola pública é uma espaço privilegiado, pois parte do princípio de que as diferenças não devem ser “selecionadas” por exclusão. Ela é local privilegiado para o trabalho com a diversidade por causa do princípio de laicidade que a fundamenta; é uma escola laica num Estado laico. Sendo assim, o ensino religioso, também teve de rever sua fundamentação epistemológica, o que fez com que a o artigo 33 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) fosse alterado em 1997, garantido, desta forma o “respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”.
Na perspectiva desta nova concepção jurídica, apoiada também nos Direitos Humanos e no novo tratamento que se deve dar à diversidade e ao pluralismo (incluído aí o religioso), considerando uma epistemologia fundamentada na antropologia, sociologia, filosofia, psicologia etc., o ensino religioso tem um papel inovador e pode contribuir verdadeiramente na formação cidadã de nossos estudantes, pois considera estes como sujeitos e não meros números de um sistema, respeita suas trajetórias de vida, leva-os à reflexão sobre a prática da liberdade e do respeito mútuo dentro do espaço escolar, possibilitando a formação da autonomia.
A experiência acumulada nestes anos de trabalho em uma escola pública tem reforçado para mim a necessidade de tocar em temas complexos e que sofrem certo tipo de tabu, ou seja, assuntos sobre os quais não se fala por medo ou por preconceito, como é o caso das religiões afro-brasileiras.
Na prática diária da vida escolar estes “termos tabu”, como é o caso da palavra macumba, têm de ser trazidos à tona, devem ser discutidos abertamente sem preconceitos para que o preconceito não cause mais estragos do que o já feito, impedindo as pessoas de se relacionarem. A vida do estudante torna-se mais enriquecida quando ele tem a possibilidade de conhecer outras culturas, outros modos de relação com o sagrado e o religioso. Neste sentido, um estudante de escola pública na periferia poder conhecer, estudar e visitar uma sinagoga, uma mesquita ou uma roça de candomblé, mesmo não pertencendo a nenhuma dessas matrizes culturais e religiosas poderá ajudá-lo a compreender melhor a sua própria cultura e religião, o que fará dele um cidadão mais apto à convivência com a diferença e mais tolerante com a diversidade que o cerceará pelo resto de sua vida.

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